Amigos do Bem gera impacto de R$ 2,1 bi

Matéria publicada pelo site Valor Econômico – 08 de março de 2023

Focada em educação, saúde e geração de renda para erradicação da pobreza, ONG desenvolve
programas que favorecem 150 mil pessoas no sertão nordestino.

 

Após dois anos de pesquisa, o Instituto de Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) calculou que os
investimentos realizados pela organização Amigos do Bem entre 2012 e 2021 geraram ou ainda vão produzir um impacto social da ordem de R$ 2,1 bilhões. Cada real doado para a ONG, focada em educação, saúde e geração de renda para erradicação da pobreza no sertão nordestino, se transforma em R$ 6,45 na ponta. “É um número extraordinário. Para o tamanho do nosso projeto, que é gigante, é difícil conseguir esse resultado”, afirma Alcione Albanesi, fundadora e presidente da organização.

Em 2023, ao completar 30 anos de dedicação às populações mais pobres do país – de 55 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil, 26 milhões estão na área de atuação da ONG – Albanesi revela que finalmente ficou pronto o “modelo de desenvolvimento social sustentável” da instituição, uma nova metodologia para organizações ou empresas interessadas em replicar o modelo de atuação da Amigos do Bem, inclusive influenciando a transformação de políticas públicas.

Com programas que favorecem 150 mil pessoas todos os meses, em 300 povoados do sertão de Alagoas, Pernambuco e Ceará, a ONG é responsável por mais de 10 mil crianças e jovens com aulas diárias e cursos profissionalizantes de culinária, cabeleireiro, manicure e informática nos chamados centros de transformação instalados em quatro povoados; 187 mil atendimentos médicos, com distribuição gratuita de remédios e óculos de grau; fábricas de beneficiamento de castanha, produção de doces e oficinas de costura e artesanato, que
geram mais de 1.500 empregos. Para dar conta de tanto trabalho, 10.600 voluntários formam um pequeno exército do bem, doando tempo para colocar os projetos de pé.

O impacto dessas ações chamou a atenção do Pacto Global da ONU no Brasil, iniciativa da Nações Unidas para engajar o setor privado na agenda da transformação social e climática. Por esta razão, Alcione Albanesi foi escolhida como a primeira liderança com impacto no ODS 1 – cuja meta é a erradicação da pobreza no mundo e que integra os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, firmados na conferência do clima da ONU em 2012.

Feliz com a deferência, Albanesi parece mais comovida, contudo, quando fala dos efeitos de pequenos acontecimentos em sua vida. Como no dia em que aprendeu com uma senhora moradora do semiárido a receita da fome. “Dona Geralda percorreu mais de seis km a pé para chegar até nós, mesmo tendo elefantíase e as pernas
inchadas. Foi ela quem me ensinou a receita da fome. Ela dizia: você coloca um pouquinho de feijão, bem pouquinho, e muita água, e vai dando o caldinho aos poucos para os filhos. Sua casa era de taipa, sem
água, sem comida, com um rebanho de crianças, e quando chegamos ali as crianças gritavam – mãinha, mãinha, você trouxe comida? Depois dessa experiência nós mudamos todo nosso programa. Eu disse: não
podemos mais atender apenas com alimentos, precisamos promover transformação de vidas.”

Alcione Albanesi começou a empreender quando tinha 17 anos, ao abrir uma confecção em São Paulo, e chegou a ter 80 funcionários. Depois, fundou a FLC, em 1992, que se tornou líder no mercado de lâmpadas. Em 1993, naquela que foi, segundo ela, a decisão mais difícil da vida, passou a dedicar-se exclusivamente à Amigos do Bem. A seguir, trechos da entrevista concedida ao Valor.

Valor: Como o trabalho da Amigos do Bem tem afetado outras organizações e o ambiente filantrópico brasileiro?

Albanesi: Não tem uma palestra que eu dê em que não chegue alguém e me diga que meu exemplo o inspirou e estimulou a começar um trabalho social. E agora acabamos de concluir nosso “modelo de desenvolvimento social sustentável”, uma metodologia que poderá ser replicada por quem se interessar. Com ela, nosso modelo de trabalho poderá influenciar também as políticas públicas. Imagine, depois de 30 anos, tantos testes, erros e acertos, quanto conhecimento adquirimos. Isso agora estará disponível. Daremos cursos para ensinar nosso
método e em julho lançaremos um livro sobre nosso trabalho.

A liderança precisa desenvolver a cultura não apenas da doação, mas também da auto doação

Valor: Vocês têm ideia do impacto social da organização, em termos monetários?

Albanesi: O Instituto de Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) fez um estudo que levou dois anos, bem aprofundado, sobre o tamanho do impacto de Amigos do Bem e chegou a esses dados: o retorno social sobre investimento (SROI) da instituição é de 6,45, ou seja, cada R$ 1 doado ao projeto se transforma em R$ 6,45 na ponta. É um número extraordinário. Para o tamanho do nosso projeto, que é gigante, é difícil conseguir esse resultado. Ainda de acordo com o Idis, os investimentos realizados por Amigos do Bem entre 2012 e 2021
geraram e ainda vão produzir impactos sociais na ordem de R$ 2,1 bilhões. O impacto maior, segundo o estudo, pode ser observado nas frentes de trabalho e renda (38,4%) e educação (35,7%), reforçando o modelo de desenvolvimento social sustentável criado pela instituição.

 

Valor: O que mudou com a pandemia?

Albanesi: Na pandemia, houve um aumento de 43% proveniente de doação de pessoas físicas em relação a 2019 e de 59% de doações de empresas. Com parte dessas doações, a fibra óptica e a internet chegaram a algumas comunidades e isso mudou completamente nosso projeto. Temos agora a nossa Praça Digital, onde 200 jovens
estudam tecnologia, com apoio do Senac e uma grande doação do Google. Já temos jovens que vão se formar como desenvolvedores. É a quebra de um ciclo de miséria, pois eles são os primeiros de suas famílias a estudar. Os pais e avós, em geral, são analfabetos. Ver essa transformação é o melhor prêmio que podemos receber.

 

Valor: O que representa para vocês o reconhecimento do trabalho pelo Pacto Global e sua escolha como referência de liderança na atuação do ODS 1 – que visa a erradicação da pobreza até 2030?

Albanesi: Fiquei muito feliz por essa notícia. Estamos trabalhando juntos e acreditando que mais próximos das empresas poderemos desenvolver mais consciência e responsabilidade de todos para erradicar a pobreza, a começar do nosso país. Teremos agora uma agenda de compromissos, com reuniões, comitês em vários Estados,
para ir mostrando os desafios e irmos desenvolvendo junto com as empresas novas estratégias.

 

Valor: Como anda o desafio de captar recursos? Que novos modelos de captação surgiram para bancar esses grandes projetos?

Albanesi: Os desafios na captação continuam muito grandes. Quando vemos aumentar o desemprego e a inadimplência no país, a gente já sabe que vai aumentar também a inadimplência nas doações. Nossas doações contam com o movimento dos quase 11 mil, voluntários, que fazem uma corrente fortíssima de arrecadação. Nossa campanha no fim do ano só acontece por causa do comprometimento dos voluntários, que acabam atuando individualmente e em grupos. Mas o que vi de grande mudança recentemente foi o aumento da arrecadação digital. Com a pandemia também houve aumento do número de empresas doadoras. Mesmo depois, os próprios colaboradores passaram a cobrar a continuidade das ações sociais e das doações, porque a pandemia acabou, mas a miséria do nosso país não acabou. O que vimos foi um despertar da solidariedade, milhares de empresas que não tinham cultura de doação passaram a doar.

 

Valor: Que dicas costuma dar a empresas que buscam desenvolver a área de voluntariado ou engajar colaboradores em ações sociais?

Albanesi: Dos nossos 10.600 voluntários, um terço está ao meu lado desde o começo, ou seja, há 30 anos. Isso em si já é um case, porque as pessoas geralmente começam e param. E metade deles há mais de 15 anos. Jamais teria construído esse projeto se não fosse pelas mãos silenciosas desses milhares de voluntários. E eles seguem pelo exemplo. Eles sabem que sou a primeira a chegar no trabalho e a última a sair. Trabalhamos lado a lado e estou sempre perto desse grande exército do bem. Nas empresas, o que costumo falar em minhas palestras é que todos os executivos têm que se apresentar de forma igual, do CEO, diretores, aos colaboradores de menor escalão. E a liderança precisa desenvolver a cultura não apenas da doação, mas também da auto doação. Voluntariado é auto doação. Fazer o bem é fascinante e recompensador e você não precisa estar bem para fazê-lo.
Você pode fazê-lo em qualquer circunstância da sua vida. Se você não tiver recursos financeiros, você tem seus recursos interiores. Todos nós podemos fazer a diferença. O bem não diferencia ricos e pobres. Nada nos impede. O que falo nas empresas é isso, o movimento tem que ter adesão de todos na empresa, em todos as esferas.

 

Valor: O funcionário percebe quando existe uma falta de exemplos que vêm do alto?

Albanesi: Sim. A liderança tem que estar conectada com toda a equipe. Quando não participa das ações solidárias, isso diminui muito o engajamento dos colaboradores. Porque eles pensam – eles estão propondo algo mas não é um propósito legítimo.

Valor: O que é propósito legítimo?

Albanesi: É pôr em prática aquilo em que você realmente acredita, tirando da frente o marketing. Eu falo muito sobre legitimidade. Qualquer um dos voluntários com quem você se sentar para conversar vai transmitir essa unidade de propósito. O projeto tem que nascer de dentro para fora. Com esse sentimento é que a gente acaba trazendo esses resultados tão positivos em nossos trabalhos.

 

O povo brasileiro é um povo bom e solidário. Só que não podemos nos movimentar apenas nas tragédias

 

Valor: Como mudar o padrão de solidariedade dos brasileiros, que, na maioria das vezes, ainda acontece apenas como uma reação emergencial a tragédia?

Albanesi: Ainda temos que desenvolver a cultura da doação no nosso país. Mas acredito que os jovens de hoje já nascem com o chip da solidariedade. Eles são diferentes, mais interessados. Quando nós iniciamos, há 30 anos, nós ligávamos para as pessoas e elas desligavam o telefone na nossa cara. As portas estavam sempre fechadas para o nosso trabalho. Era preciso muita persistência. As pessoas começavam e paravam, porque era muito difícil seguir adiante, conseguir uma doação. Íamos de casa em casa pedindo arroz e feijão para enviar para o povo do Nordeste. Os desafios eram imensos, até de nos apresentarmos como uma ONG, ninguém tinha tempo para nos ouvir. Fazíamos rifas, sorteios, reuniões, tudo para arrecadar algum recurso.
Percorremos uma estrada cheia de adversidades, formando voluntários quando nem se falava em voluntariado. Precisamos de muita força para não desistir.

Valor: Mas esse não seria um dos maiores desafios? Às vezes não acontece de as pessoas ou organizações terem agendas ocultas quando se engajam em alguma causa?

Albanesi: Sim, acontece isso também. Mas eu sempre digo – antes de ser para o outro, é por mim mesma que eu faço o que faço. Nunca me questionei se o que estava fazendo valia a pena. Porque sempre fiz por mim mesma, porque isso sempre me fez sentir feliz. E não sou só eu, os voluntários também sentem da mesma maneira. E nós dizemos a eles: façam esse trabalho por vocês mesmos, e depois para o outro. Isso muda tudo. Fazer o bem não é uma troca com Deus, eu faço o bem e as coisas na minha vida têm que dar certo. Não é isso. É um desenvolvimento do amor dentro da gente.

Valor: Que experiências pessoais marcaram sua trajetória?

Albanesi: Temos grandes histórias. Quem mais me ensinou lições importantes na vida foram as pessoas mais simples. As Marias, as Olgas que encontrei no sertão. Dona Olga, que mora em Inajá, que dividia um ovo com seus quatro filhos, e ficava sem comer. Dona Geralda, que em 2001 veio nos encontrar percorrendo seis quilômetros a pé, mesmo tendo elefantíase e as pernas inchadas. Foi ela quem me ensinou a receita da fome. Ela dizia: a receita da fome é assim – você coloca um pouquinho de feijão, bem pouquinho, e muita água, e você vai dando o caldinho aos poucos para os filhos. Sua casa era de taipa, sem água, sem comida, com um rebanho de crianças, e
quando chegamos ali as crianças gritavam – mãinha, mãinha, você trouxe comida? Depois dessa experiência nós mudamos nosso programa. Eu disse: não podemos mais atender apenas com alimentos, precisamos promover transformação de vidas.

 

Valor: O que a levou a começar esse trabalho?

Albanesi: Todo esse trabalho é resultado da indignação com a desigualdade de nosso país. Sempre fui empreendedora, a gente nasce com esse dom. Com 17 anos eu já tinha 80 funcionários em minha empresa. Mas minha primeira viagem ao sertão, em 1993, mudou minha forma de ver o mundo. Eu voltei e senti que não era mais a mesma pessoa. Foi o que nos levou a começar. As histórias de tantas Marias, tantas Olgas, Geraldas, de tanta resiliência, com muitos filhos, sem ter comida, sem água para beber. Você pergunta para elas o que
elas pediriam para Deus, e elas respondem – água. Mulheres que vão para a roça, deixam os filhos, e voltam com as mãos cortadas. Aprendi demais com essas pessoas, creio que elas me tornaram uma pessoa melhor.

Valor: O fato de ser mulher fez com que suas renúncias pessoais para poder estar presente no Nordeste fossem maiores?

Albanesi: Conciliei durante muitos anos minha empresa – eu viajei 71 vezes para China quando tinha empresa – e minha família. Meus quatro filhos eram pequenos quando eu comecei a ONG. Levava-os às vezes comigo, eles iam nos caminhões em algumas ações. Mas sempre houve uma ausência física em casa. Eu passo de 10 a 15 dias do mês fora de casa, nas comunidades do sertão. Meus filhos me dividem hoje com 150 mil irmãos. Além disso, tem a renúncia de não poder estar com a família em datas importantes, como Natal, aniversários, feriados. E tem as coisas boas da vida – que são o maior concorrente do fazer o bem. Em vez de ir para a praia, num dia de sol, você está fazendo arrecadação de alimentos. São muitas renúncias. Para fazer o bem bem feito é preciso muita dedicação.

Valor: Sobre essas muitas tragédias que o país enfrenta – indígenas morrendo de desnutrição, deslizamentos por conta de tempestades, a volta ao mapa da fome. O movimento filantrópico está à altura de tantas dificuldades?

Albanesi: O povo brasileiro é um povo bom e solidário. Só que não podemos nos movimentar apenas nas tragédias. Já temos conhecimento suficiente para evitá-las. Em 2022, nós atuamos em todas as tragédias causadas pelas enchentes no Nordeste. Ficamos lá duas semanas direto, trabalhando dia e noite, na Bahia, Alagoas e Pernambuco. Só em Alagoas foram 60 mil desabrigados. Na Bahia, mais de 80 mortos. Onde eles viviam? Em locais onde não deveria morar ninguém. Se a sociedade civil e governos se preocupassem mais com o ser humano, as coisas seriam diferentes. Nós precisamos cuidar mais uns dos outros. Estamos todos juntos no barco da vida, temos o direito da alimentação, da moradia. Quando houver um olhar mais humano diante dessas situações poderemos evitar muitas das tragédias. A miséria para mim é fruto do descaso do homem.

 

Valor: No caso do litoral norte de São Paulo, a tragédia alcançou também a casa dos ricos, a água invadiu mansões, e não somente as áreas pobres. Isso poderia de alguma maneira resultar em mudanças mais rápidas naquela região?

Albanesi: Tenho certeza que sim. Veja a rápida mobilização que aconteceu de vários grandes empresários ali para ajudar. Não vi isso acontecer no Nordeste, em 2022, dessa mesma maneira.

Valor: O que mais a inspira nesse trabalho, o que a fortalece quando as coisas não estão indo bem?

Albanesi: O olhar das crianças. Toda vez que eu saio na rua, dezenas de crianças vêm me seguindo, andando junto comigo. Quando vou dormir eu lembro do olhar delas. Elas esperam de nós um futuro. Se nós não estivermos lá elas irão pelo mesmo caminho dos pais. Este é o legado que eu quero deixar. Mas o que nós construímos foi pelas mãos de muitos. A gente não faz nada sozinho.

FONTE: Valor Econômico 

FOTO: Silvia Zamboni/Valor